Palavras Esquecidas

 * Em 2018, em uma época nebulosa de minha vida pessoal e profissional, escrevi o conto "Palavras Esquecidas" e o submeti a um concurso organizado pelo meu então professor na faculdade, Lucas. A surpresa foi ter ganho o dito concurso! O texto foi publicado na íntegra na coletânea "Histórias Acadêmicas", e segue abaixo para quem quiser conhecer um pouco de meu estilo. *


Palavras esquecidas

Gabrielle Hoff Calegari

Finalmente, ela está em silêncio. As sombras do notebook aberto transformam a escuridão em raios coloridos direcionados para um rosto pintado de arte abstrata. Há uma imagem distorcida sobre o rosto dela, que disfarça a verdade sobre seu esgotamento. Ainda assim, ela recém começou. Seria o quarto ou o quinto turno do dia? Trabalho, trabalho, filhos, casa. Era o quinto, então. Começando uma hora e vinte e sete minutos da madrugada, talvez ela seja capaz de dormir duas horas. Ou três. 

Ela abre o editor de texto, e encara o cursor piscando. Já leu sobre aquilo, estudou formas de evitar, mas ainda continua presa naquela página em branco, na primeira palavra que nunca consegue escolher. Estremece. A temperatura caiu, ou é apenas um reflexo inútil do corpo diante da própria incapacidade? Os dedos permanecem sobre as teclas, mas não pressionam nada, ainda que tremam levemente. Fecha os olhos, e por um momento visualiza claramente tudo aquilo que precisa dizer. Amo estudar, amo aprender, mas amo mais ainda escrever, e parece que não consigo reaprender isso. Ainda assim, os dedos ainda permanecem estáticos. 

Levanta. Busca um casaco, esquenta uma xícara de chá. No silêncio da noite, ela escuta o medo de dizer aquilo que quer. Costumava ser natural. Agora, é apenas fácil quando deve falar sobre o que conhece, sobre o que estuda. Completamente seguro quando ela não precisa expor a alma. Brandamente tranquilo quando não há sentimento nenhum envolvido.

Tudo que há para ser dito já foi dito, ela tinha ouvido, anos antes, o máximo que você será capaz de fazer é dizer de uma forma diferente. Fora na faculdade anterior, quando eles discutiam sobre linguagem, sobre autenticidade e originalidade. Era o que ela mais gostava – a dança dos dedos sobre o teclado formando um espetáculo em letras e em palavras na tela do computador. E algo morrera, naquele dia. Ela tinha sido tão inocente, tão infantil, acreditando na magia que fluía de seus dedos, tentando ignorar vereditos cruéis e definitivos.

E então uma professora lhe dissera corte o que é supérfluo, retire os adjetivos, abandone a subjetividade, diga apenas o que aconteceu, apenas os fatos, nem uma vírgula a mais. Ela obedeceu. Sufocou o que mandaram, mas também afogou quem ela era, o movimento natural dos dedos, a fluidez das palavras. A vida se encarregou de manter tudo aquilo submerso por tempo suficiente para que só restasse uma memória distante de um talento que ela não tinha mais, que ela nunca tivera – apenas acreditara.

Ela sacode o rosto, esfrega os olhos, joga fora o chá que esfriou. O relógio já marca duas e dezoito, e ela sabe que a nostalgia não resultará em nada. Ela precisa virar a página do passado, precisa superar qualquer bloqueio criativo – não há tempo para isso, em sua vida – não com filhos, trabalho, contas a pagar, livros a estudar. 

Senta-se novamente diante do notebook. Puxa um Caderno de Estudos ao lado, folheia-o distraidamente, o som das folhas cortando o ar. O estudo está em dia, toda noite depois de colocar as crianças na cama. E, ainda assim, naquela quinta-feira, com a madrugada toda só para si, ela sabe que seu desafio é ir além. Superar seus medos, traumas, bloqueios. Ela sabe que já arranjou desculpas suficientes, enquanto devia estar arranjando escapatórias para aquela prisão.

Solta os cabelos do elástico que os prende, deixa-os caírem desordenados, bagunçados, imóveis sobre os ombros e as costas. Move a cabeça, estalando-a. Soou tão alto que ela quase riu, subitamente desperta. Poderia falar sobre sua rotina – sobre os dias inteiros de trabalho, os momentos roubados com os filhos, a rotina depois de buscá-los na escola, o cuidar da casa, a dedicação aos estudos. Ela podia falar do peso das múltiplas jornadas de uma mulher, de uma mãe. Ela podia falar das noites em claro estudando, lendo, escrevendo os trabalhos, buscando a formação que ela não teve antes – porque tudo que a anterior lhe tolhera, essa agora a libertava.

Os dedos erguem-se novamente diante das teclas. Ela quer escrever, desesperadamente. Quer romper a barreira que a cerca, que a sufoca nas palavras não escritas. Podia morrer dessa necessidade súbita de gritar através do cursor piscante. O estômago embrulha, e ela pensa no começo. Penso continuamente porque quero ser livre. E então repensou. Leio enlouquecidamente porque quero ser livre. E, finalmente, Estudo desesperadamente porque quero ser livro. Não. Nenhum desses.

O estudo serve para meu crescimento, e serve também para minha liberdade. É meu meio e meu fim. O coração acelera, e ela pensa que vai vomitar o chá que nem tomou. O branco da tela lhe faz parecer pálida, doentia. Os dedos pousam sobre as letras que ela não pressiona, não ainda. Há algo mais – olhos abertos, imagina as letras seguintes, escorrendo pelos dedos, pingando sobre o teclado, inundando a tela vazia.

Estudo com coragem, em cada segundo livre. Viver não é preciso, ler não é preciso. Estudar é preciso. Estudar é meu caminho para o céu. É meu caminho para o vôo livre, usando meu pára-quedas de palavras. É bonito. É quase poético. Em tudo que ela tem estudado, permaneceu na segurança do conhecimento adquirido. É assustador, ser desafiada naquilo que acreditou nunca mais ser capaz de realizar. É aterrorizante, voltar a pensar nas palavras que ela poderia ter escrito. Ela tentaria, agora. Podia sentir o vômito vindo, crescendo dentro dela, a soma das milhares, das centenas de milhares, das infinitas palavras que ela não escrevera. Nenhuma sequer.

Por um segundo, ela tenta segurar, tenta frear. É para isso que estudei, para fazer transbordar aquilo que afogava quando desconhecia que a palavra não precisa de ar para viver. O esgotamento evaporou, no calor que lhe sobe. Abandona o casaco, levanta os cabelos, afastando-os da nuca, quer ligar o ventilador mesmo sendo inverno. Quer entender o que mudou, de repente. Porque naquela madrugada silenciosa e inacabável – o relógio marca três e quarenta e dois – as palavras que ela já perdera parecem encontrar seu caminho definitivo. 

E então, rápida como ela já tinha sido, a primeira linha salta na velocidade da luz, os dedos tão rápidos que parecem ter dez anos a menos. Voltei a estudar para recuperar uma parte minha que mataram há dez anos...

O choro a interrompe. Alto, desesperado. Ela não sabe o que fazer, não com o vômito em andamento, não quando as palavras estão todas ali, na ponta dos dedos, a meio caminho daquilo que ela mantivera aprisionado. Os dedos ficam imóveis, a mente gira, funcionando tão rápido que o enjôo aumenta.

O silêncio se foi. A tela, não mais em branco, é de repente fechada com um baque. A criança chora, grita algo sobre um pesadelo, sobre um monstro. “Cheio de letras, vomitando palavras, eu não podia nem respirar!”.

Ela ainda olha uma última vez para o notebook, a sala agora na mais completa escuridão. Seus dedos coçam, desesperados para serem libertos. Não agora, porém, mas em breve. Não esquecer as palavras, nunca mais! É uma promessa, para depois de acalmar a criança. Não sufocar as palavras, nunca mais! Jurado para depois de fazê-lo voltar a dormir. Então, ela irá recuperar tudo aquilo que a educação lhe devolveu: as frases que ela nunca mais conseguira escrever, a jovem apaixonada e enlouquecida cujos dedos não podiam ser parados, cujas histórias precisavam ser contadas.

Como uma avalanche, as palavras desabarão num rio de neve, pesado e veloz, redesenhando essa montanha gelada que passou a chamar de alma. Refazendo, através dos desafios de continuar estudando, através da força para não desistir, os contornos das palavras que esqueceu e que lembrou. Porque dormir não é preciso, viver é preciso. Depois. Em breve. As palavras continuarão seu caminho.




Nome: Gabrielle Hoff Calegari

Idade: 28 anos

Cidade: Guaíba - RS

Curso: Letras

Profissão: Jornalista / Professora




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